O autor, com aquele conhecimento antigo sobre as coisas que mistura erudição, competência e imaginação, sai de si à procura das funções e significados imbricados nas construções sintáticas que fazem o conto "O beijo" tão singular para ele. Sua busca, no entanto, não tem nada de estruturalista, é, na verdade, algo a mais, quase uma escuta da ressonância da forma, ou melhor, do sopro que a forma dá à imagem. O raciocínio, arguto e refinado, "numa redescrição apaixonada" como ele mesmo define o tipo de crítica que admira, analisa a arquitetura desenhada e a entonação sugerida pela descrição e como ela chega até o leitor e acaba por direcionar sua leitura.
Depois de percorrer várias vezes esse caminho pela narrativa e avaliar o impacto da sua leitura e os sentidos provocados num capítulo que se chama justamente "Observação séria", ele insiste na percepção de que, no conto, o arranjo dos detalhes organiza cautelosamente as emoções que serão despertadas e, contraditoriamente, uma vez que razão e sentimentos muitas vezes são tidos como antípodas, provoca e elabora uma surpreendente imagem.
O passeio com Wood, advirto, é longo, embora seja um livro de pouca extensão:118 páginas. Isto porque, em sua observação, cada detalhe é pensado e pesado em miligramas, numa aproximação do texto quase borgiana, pois o argentino era outro que, quando se 'agarrava' a um texto ou autor, mordia-o e mastigava-o vagarosamente como a um bom prato para extrair-lhe o sabor.
À medida que fui lendo, também fiz relações com textos lidos por mim e fui elaborando algumas reflexões. Acho a descrição dificílima, algo de ourives, caso queira que ela não seja apenas decorativa. Lembro-me, por exemplo de, ao ler Os Maias, livro que adorei, ter pulado páginas de tapetes, cortinas e adereços (e confesso que foram muitas).
Com todo o respeito ao Eça, a descrição a que me refiro é de outra ordem: é segurar o leão com as mãos e não deixá-lo escapar enquanto não sentir seu pelo, é saber que o poder que detém nessa situação é momentâneo. Isso acaba por gerar uma outra situação: o perigo não apaga o prazer, mas é um prazer que se demora não no tempo, mas na suspensão dele, na manutenção de um estado de atenção, na necessidade de permanência diante da 'fera', cuja beleza precisa ser capturada e não o animal.
Nas descrições, a bem dizer tradicionais, o esforço é justamente de um controle sereno e acima da situação, não parece haver riscos, tudo concorre para o bem-estar. Isso não pode acontecer diante de um leão (Borges, se usasse essa metáfora, certamente preferiria um tigre).
Já que falamos em Borges, seu texto que mais me marcou, sem dúvida, foi "O Fazedor". Nele, esse maravilhoso escritor descreve o momento da cegueira com uma frase tão simples que se torna letal: "uma pertinaz neblina lhe apagou as linhas da mão".
Em estilo bem diverso, lembrei-me do imbatível Rubem Fonseca. Em seus contos, nos quais a violência é minuciosamente descrita, cada palavra tem um peso particular, nem mais nem menos, e seu impacto no leitor oscila entre o horror e o medo.
Por isso, quando temos contato com uma descrição dessa natureza, seja ela sutil como na cena do beijo, melancólica qual uma cigana cega ou arrepiante nos dentes quebrados por um cobrador, ela nos altera por completo porque tem o poder de nos reter no acontecimento, esse evento que nunca se repete. A narração nos leva consigo, é movimento em sua própria urgência de falar, a descrição, ah essa pantera disfarçada de felino ameno, para o movimento do texto e suspende sua respiração.
Assim, basta uma frase pra você sentir o pelo do leão, o cheiro do jasmim ou o susto de um rosto em fuga.
S. Diva
O passeio com Wood, advirto, é longo, embora seja um livro de pouca extensão:118 páginas. Isto porque, em sua observação, cada detalhe é pensado e pesado em miligramas, numa aproximação do texto quase borgiana, pois o argentino era outro que, quando se 'agarrava' a um texto ou autor, mordia-o e mastigava-o vagarosamente como a um bom prato para extrair-lhe o sabor.
À medida que fui lendo, também fiz relações com textos lidos por mim e fui elaborando algumas reflexões. Acho a descrição dificílima, algo de ourives, caso queira que ela não seja apenas decorativa. Lembro-me, por exemplo de, ao ler Os Maias, livro que adorei, ter pulado páginas de tapetes, cortinas e adereços (e confesso que foram muitas).
Com todo o respeito ao Eça, a descrição a que me refiro é de outra ordem: é segurar o leão com as mãos e não deixá-lo escapar enquanto não sentir seu pelo, é saber que o poder que detém nessa situação é momentâneo. Isso acaba por gerar uma outra situação: o perigo não apaga o prazer, mas é um prazer que se demora não no tempo, mas na suspensão dele, na manutenção de um estado de atenção, na necessidade de permanência diante da 'fera', cuja beleza precisa ser capturada e não o animal.
Nas descrições, a bem dizer tradicionais, o esforço é justamente de um controle sereno e acima da situação, não parece haver riscos, tudo concorre para o bem-estar. Isso não pode acontecer diante de um leão (Borges, se usasse essa metáfora, certamente preferiria um tigre).
Já que falamos em Borges, seu texto que mais me marcou, sem dúvida, foi "O Fazedor". Nele, esse maravilhoso escritor descreve o momento da cegueira com uma frase tão simples que se torna letal: "uma pertinaz neblina lhe apagou as linhas da mão".
Em estilo bem diverso, lembrei-me do imbatível Rubem Fonseca. Em seus contos, nos quais a violência é minuciosamente descrita, cada palavra tem um peso particular, nem mais nem menos, e seu impacto no leitor oscila entre o horror e o medo.
Por isso, quando temos contato com uma descrição dessa natureza, seja ela sutil como na cena do beijo, melancólica qual uma cigana cega ou arrepiante nos dentes quebrados por um cobrador, ela nos altera por completo porque tem o poder de nos reter no acontecimento, esse evento que nunca se repete. A narração nos leva consigo, é movimento em sua própria urgência de falar, a descrição, ah essa pantera disfarçada de felino ameno, para o movimento do texto e suspende sua respiração.
Assim, basta uma frase pra você sentir o pelo do leão, o cheiro do jasmim ou o susto de um rosto em fuga.
S. Diva
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