terça-feira, 24 de dezembro de 2019


O NATAL E A COZINHA

Hoje, ao tomar café na padaria, vi muitas pessoas buscando matinalmente sua ceia de Natal: peru assado e pão americano pareciam ter sido os mais encomendados. Praticidade, nos tempos de hoje, é moeda poderosa. No entanto, fiquei me perguntando por que motivo, de certa forma, aquilo me desagradava.
Aos poucos, recomponho minha relação com o Natal e sua simbologia para entender o desconforto na fila da padaria. Embora eu seja péssima cozinheira, admiro o ritual da produção da comida e as outras relações que são consequência desse processo. No Natal essa admiração encontra um sentido a mais e acaba revestida de tantos outros sentimentos, como afeto, comunhão, festividade e alegria.
Assim, preparar a comida é antes sentar na sala e discutir com minhas filhas o cardápio e procurar encontrar um ponto de equilíbrio (impossível) entre tantas predileções díspares. Num segundo momento, abrir prazerosamente um tempo elástico no calendário para ir ao supermercado e passear entre as prateleiras à procura dos ingredientes. Ao chegar em casa, nada como aquela sensação de estar fazendo a coisa certa.
Depois dessa primeira fase, vem o segundo momento:  a cozinha em ebulição. Pode parecer absurdo, mas me sinto gratificada ao ver panelas ganhando vida e função: assando, cozinhando, fritando, como minha mãe tinha  imenso prazer em fazer. Satisfação em saber que todo o empenho em produzir os utensílios e plantar os alimentos encontra realização, pois cada um adquire um sentido e uma existência. Nesta boa profusão, encontram-se batatas, peixe, verduras, condimentos que se misturam amigavelmente, cada um encontrando seu par. E aí vale a escolha pelo olfato, pela experiência, pela cor etc.
Nos outros cômodos, vive-se o burburinho da arrumação da casa, que faz parte dessa sacolejada no ânimo que é o Natal. Trocar a roupa de cama e mesa que já acumulou o cansaço dos dias anteriores e o pó dos tempos difíceis, pôr para lavar as fronhas que ouviram nossos pensamentos inquietos na madrugada, como a dizer para elas obrigada, fiquem tranquilas, tudo passará, agradecer às toalhas de mesa que nos serviram tantas refeições e que foram palco silencioso de conversas, algumas boas, outras difíceis. Claro, isso não apaga as tristezas e dissabores, não tenho essa ilusão, mas sei que nos renova para que possamos nos fortificar já que as adversidades são parte do caminho.
De volta à cozinha, aprecio tudo tomando forma: o que antes era leite, farinha e ovos se transforma num molho que vai inundar o peixe, cujo sabor original será desviado pela banana; vegetais que sob o fogo adquirem um gosto novo e pululam de alegria na roupagem aquecida. Aí está, na comida pronta, não vivemos essa história, ela chega finalizada para nós, um the end.   
Depois da desorganização necessária à feitura dos pratos (há algo mais sem graça do que cozinha certinha demais na hora do cozimento, feito programa de televisão?), um novo ritual tem início: os pratos, arrumados, como cabe à ocasião, migram para a mesa, que se aprontou belamente para recebê-los (pratos guardados durante um ano enfim saem dos armários).
Assim, quando formos comer, tudo isso passará por nós: o supermercado e a moça do caixa cuja tatuagem me chamou a atenção, a delicadeza do porteiro em me ajudar com as compras, a algazarra (e a preguiça também das meninas) ao guardar os ingredientes, a alegria de perceber que sim, apesar de a mamãe não ter estado muito alegre, teremos Natal, a ajuda das funcionárias que contribuíram com o sabor e a ordem, e o tempo, esse convidado inusitado que está a nos lembrar que ele está em nós e não o contrário.

17 comentários:

  1. Por trás da professora e pesquisadora, uma escritora sempre esteve. E agora vem ao mundo. Bela estréia, Sarinha. Obrigado por nos devolver o gosto (em todos os sentidos) do Natal. Feliz Natal para você e para as meninas

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Savinho, sua apreciação é muito valorosa para mim. Um grande bj

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  2. Sarah, para ti não tenho palavras. Belo texto! Feliz Natal!!

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    1. Fernando, vc é antes de tudo um homem bondoso! Grata pela presença sempre.

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    1. Oh, meu amigo, vc tão distante, mas tão perto pelas palavras. Saudades

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  4. Bela das belas do 7S.Lindo texto

    Feliz Natal.

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  5. Tem um ditado que diz: "O afeto é o tempero das boas lembranças". Quanto afeto tem nessa cozinha, nesses preparos, nesses ritos e nesse texto? São muito! Senti_os todos!lindo!

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  6. Emocionante e cheio de vida. Boas festas!

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    1. Fico tão feliz quando a emoção é vivida por todos que me leeem!

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  7. Mto lindo Sarinha, o afeto demonstrado nessa data é um tempero muito importante que sempre deve existir e ser apreciado nas diferentes situações da vida! Feliz natal.

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    1. Desculpe a demora em responder, mas muito feliz com suas palavras.

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  8. Que belo texto! Minha mãe sempre disse que a união da família se dá na cozinha. Preparamos o alimento do corpo e da alma! Obrigada pelas boas lembranças! Feliz Ano Novo! Muita luz pra vc e sua família! ��

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