sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A descrição do leão

James Wood, num belo livro a mim emprestado por Sávio Alencar (A coisa mais próxima da vida), dedica demorada e detidamente várias páginas a analisar a força descritiva de um conto de Tchekóv,  aliás, sendo mais precisa, a uma cena e seus detalhes.
O autor, com aquele conhecimento antigo sobre as coisas  que mistura erudição, competência e imaginação, sai de si à procura das funções e significados imbricados nas construções sintáticas  que fazem o conto "O beijo" tão singular para ele. Sua busca, no entanto, não tem nada de estruturalista, é, na verdade, algo a mais, quase uma escuta da ressonância da forma, ou melhor, do sopro que a forma dá à imagem. O raciocínio, arguto e refinado, "numa redescrição apaixonada" como ele mesmo define o tipo de crítica que admira, analisa a arquitetura  desenhada e a entonação sugerida  pela descrição e como ela chega até o leitor e acaba por direcionar sua leitura. 
Depois de percorrer várias vezes esse caminho pela narrativa e avaliar o impacto da sua leitura e os sentidos provocados num capítulo que se chama justamente "Observação séria", ele insiste na percepção de que, no conto, o arranjo dos detalhes  organiza cautelosamente as emoções que serão despertadas e, contraditoriamente, uma vez que razão e sentimentos muitas vezes são tidos como antípodas, provoca e elabora uma surpreendente imagem.
O passeio com Wood, advirto, é longo, embora seja um livro de pouca extensão:118 páginas. Isto porque, em sua observação, cada detalhe é pensado e pesado em miligramas, numa aproximação do texto quase borgiana, pois o argentino era outro que, quando se 'agarrava' a um texto ou autor, mordia-o e mastigava-o vagarosamente como a um bom prato para extrair-lhe o sabor.
À medida que fui lendo, também fiz relações com textos lidos por mim e fui elaborando algumas reflexões. Acho a descrição dificílima, algo de ourives, caso queira que ela não seja apenas decorativa. Lembro-me, por exemplo de, ao ler Os Maias, livro que adorei, ter pulado páginas de tapetes, cortinas e adereços (e confesso que foram muitas).
Com todo o respeito ao Eça, a descrição a que me refiro é de outra ordem:  é segurar o leão com as mãos e não deixá-lo escapar enquanto não sentir seu pelo, é saber que o poder que detém nessa situação é momentâneo. Isso acaba por gerar uma outra situação: o perigo não apaga o prazer, mas é um prazer que se demora não no tempo, mas na suspensão dele, na manutenção de um estado de atenção, na necessidade de permanência diante da 'fera', cuja beleza precisa ser capturada e não o animal.
Nas descrições, a bem dizer tradicionais, o esforço é justamente de um controle sereno e acima da situação, não parece haver riscos, tudo concorre para o bem-estar. Isso não pode acontecer diante de um leão (Borges, se usasse essa metáfora, certamente preferiria um tigre).
Já que falamos em Borges, seu texto que mais me marcou, sem dúvida, foi "O Fazedor". Nele, esse maravilhoso escritor  descreve o momento da cegueira com uma frase tão simples que se torna letal: "uma pertinaz neblina lhe apagou as linhas da mão".
Em estilo bem diverso, lembrei-me  do imbatível Rubem Fonseca. Em seus contos, nos quais a violência é minuciosamente descrita, cada palavra tem um peso particular, nem mais nem menos, e seu impacto no leitor oscila entre o horror e o medo.

Por isso, quando temos contato com uma descrição dessa natureza, seja ela sutil como na cena do beijo, melancólica qual uma cigana cega ou arrepiante nos dentes quebrados por um cobrador, ela nos altera por completo porque tem o poder de nos reter no acontecimento, esse evento que nunca se repete. A narração nos leva consigo, é movimento em sua própria urgência de falar, a descrição, ah essa pantera disfarçada de felino ameno, para o movimento do texto  e suspende sua respiração.
Assim, basta uma frase pra você sentir o pelo do leão, o cheiro do jasmim  ou o susto de um rosto em fuga.

 S. Diva
Jáder, sempre

Volta e meia me pergunto por que continuamente volto a me aproximar de Jáder de Carvalho e sua obra. Lá se vão bons anos de pesquisa, um inclusive no exterior, uma série de artigos sobre o poeta, capítulos de livros e projetos de pesquisa. Quando, então, dou por vencida essa etapa na minha vida, eis que o moço velho de D. Maurício se reaproxima, como para dizer: sua missão não acabou, ainda há muito para fazer. E aí me vem à memória um de seus poemas mais pungentes, no qual exprime o sentimento da despedida ante a proximidade da morte:

Dobrai, ó sino, como numa despedida.
Dobrai, ó sino, como numa saudade.

Estou vivo. Sabeis. Mas tenho maus pressentimentos ...
(...)
Dobrai, ó sino, como numa despedida.
Dobrai, ó sino, como numa saudade.
Dobrai por mim!


Parece, pois, que esse sino, que por ele bateu lírica e ficcionalmente na agonia da última noite na casa da Agapito dos Santos,  não para de dobrar em minha mente e em meu coração.

Nossa história, que começou pelo assim merecimento, afinal ele é um escritor pleno, inteiro e entregue, evoluiu para outra coisa, um certo amor. Ora, direis, isso é comum! Posso, no entanto, afirmar o contrário, pois não me recordo, por exemplo, de ter me apaixonado pelo escritor que analisei na época do mestrado. Talvez seja questão de pele, como se diz por aí, pele de texto, de sentimento, de admiração.

Diante dessa permanência, coloco o caso, para sair da epiderme, em outra dimensão: sua alma, em mim despontada, continua a fazer caminho pelas palavras, ora molhadas de chuva da Serra do Estêvão, ora arengueiras como o sol do sertão, outras amansadas pela onda do mar.

Nesse percurso, então, que está sendo navegação sem porto final, houve muitos ancoradouros
passageiros, nos quais embarcaram marinheiros dispostos a vislumbrar o horizonte de reminscências do poeta: Camila, Lívia, Sárvia, Carlos e Sávio, sendo que este último alongou-se  bem mais na travessia, com bilhete somente de ida, é claro, como o próprio Jáder anteviu:

Se eu fosse um brigue, não queria âncoras,
nem  porto de descanso, nem apelos

para  o sono da paz nas enseadas.


Voltando à questão inicial, do amor que não cessa de renovar seu encanto, encontro Fernando, que na outra ponta do país mantém a admiração pelo homem-mar-sertão. Aí, como num sonho, volta tudo novamente, e o lido passa a não lido, ou seja, pede leitura, os poemas voltam a brilhar e seu imã atrai minha atenção, meu coração, meu tempo.
É, quem tem Jáder tem vida para a eternidade!

terça-feira, 24 de dezembro de 2019


O NATAL E A COZINHA

Hoje, ao tomar café na padaria, vi muitas pessoas buscando matinalmente sua ceia de Natal: peru assado e pão americano pareciam ter sido os mais encomendados. Praticidade, nos tempos de hoje, é moeda poderosa. No entanto, fiquei me perguntando por que motivo, de certa forma, aquilo me desagradava.
Aos poucos, recomponho minha relação com o Natal e sua simbologia para entender o desconforto na fila da padaria. Embora eu seja péssima cozinheira, admiro o ritual da produção da comida e as outras relações que são consequência desse processo. No Natal essa admiração encontra um sentido a mais e acaba revestida de tantos outros sentimentos, como afeto, comunhão, festividade e alegria.
Assim, preparar a comida é antes sentar na sala e discutir com minhas filhas o cardápio e procurar encontrar um ponto de equilíbrio (impossível) entre tantas predileções díspares. Num segundo momento, abrir prazerosamente um tempo elástico no calendário para ir ao supermercado e passear entre as prateleiras à procura dos ingredientes. Ao chegar em casa, nada como aquela sensação de estar fazendo a coisa certa.
Depois dessa primeira fase, vem o segundo momento:  a cozinha em ebulição. Pode parecer absurdo, mas me sinto gratificada ao ver panelas ganhando vida e função: assando, cozinhando, fritando, como minha mãe tinha  imenso prazer em fazer. Satisfação em saber que todo o empenho em produzir os utensílios e plantar os alimentos encontra realização, pois cada um adquire um sentido e uma existência. Nesta boa profusão, encontram-se batatas, peixe, verduras, condimentos que se misturam amigavelmente, cada um encontrando seu par. E aí vale a escolha pelo olfato, pela experiência, pela cor etc.
Nos outros cômodos, vive-se o burburinho da arrumação da casa, que faz parte dessa sacolejada no ânimo que é o Natal. Trocar a roupa de cama e mesa que já acumulou o cansaço dos dias anteriores e o pó dos tempos difíceis, pôr para lavar as fronhas que ouviram nossos pensamentos inquietos na madrugada, como a dizer para elas obrigada, fiquem tranquilas, tudo passará, agradecer às toalhas de mesa que nos serviram tantas refeições e que foram palco silencioso de conversas, algumas boas, outras difíceis. Claro, isso não apaga as tristezas e dissabores, não tenho essa ilusão, mas sei que nos renova para que possamos nos fortificar já que as adversidades são parte do caminho.
De volta à cozinha, aprecio tudo tomando forma: o que antes era leite, farinha e ovos se transforma num molho que vai inundar o peixe, cujo sabor original será desviado pela banana; vegetais que sob o fogo adquirem um gosto novo e pululam de alegria na roupagem aquecida. Aí está, na comida pronta, não vivemos essa história, ela chega finalizada para nós, um the end.   
Depois da desorganização necessária à feitura dos pratos (há algo mais sem graça do que cozinha certinha demais na hora do cozimento, feito programa de televisão?), um novo ritual tem início: os pratos, arrumados, como cabe à ocasião, migram para a mesa, que se aprontou belamente para recebê-los (pratos guardados durante um ano enfim saem dos armários).
Assim, quando formos comer, tudo isso passará por nós: o supermercado e a moça do caixa cuja tatuagem me chamou a atenção, a delicadeza do porteiro em me ajudar com as compras, a algazarra (e a preguiça também das meninas) ao guardar os ingredientes, a alegria de perceber que sim, apesar de a mamãe não ter estado muito alegre, teremos Natal, a ajuda das funcionárias que contribuíram com o sabor e a ordem, e o tempo, esse convidado inusitado que está a nos lembrar que ele está em nós e não o contrário.