O NATAL E A COZINHA
Hoje, ao tomar café na padaria, vi muitas pessoas buscando
matinalmente sua ceia de Natal: peru assado e pão americano pareciam ter sido
os mais encomendados. Praticidade, nos tempos de hoje, é moeda poderosa. No
entanto, fiquei me perguntando por que motivo, de certa forma, aquilo me
desagradava.
Aos poucos, recomponho minha relação com o Natal e sua
simbologia para entender o desconforto na fila da padaria. Embora eu seja
péssima cozinheira, admiro o ritual da produção da comida e as outras relações
que são consequência desse processo. No Natal essa admiração encontra um
sentido a mais e acaba revestida de tantos outros sentimentos, como afeto,
comunhão, festividade e alegria.
Assim, preparar a comida é antes sentar na sala e discutir
com minhas filhas o cardápio e procurar encontrar um ponto de equilíbrio (impossível)
entre tantas predileções díspares. Num segundo momento, abrir prazerosamente um
tempo elástico no calendário para ir ao supermercado e passear entre as
prateleiras à procura dos ingredientes. Ao chegar em casa, nada como aquela
sensação de estar fazendo a coisa certa.
Depois dessa primeira fase, vem o segundo momento: a cozinha em ebulição. Pode parecer absurdo,
mas me sinto gratificada ao ver panelas ganhando vida e função: assando,
cozinhando, fritando, como minha mãe tinha
imenso prazer em fazer. Satisfação em saber que todo o empenho em
produzir os utensílios e plantar os alimentos encontra realização, pois cada um
adquire um sentido e uma existência. Nesta boa profusão, encontram-se batatas,
peixe, verduras, condimentos que se misturam amigavelmente, cada um encontrando
seu par. E aí vale a escolha pelo olfato, pela experiência, pela cor etc.
Nos outros cômodos, vive-se o burburinho da arrumação da
casa, que faz parte dessa sacolejada no ânimo que é o Natal. Trocar a roupa de
cama e mesa que já acumulou o cansaço dos dias anteriores e o pó dos tempos
difíceis, pôr para lavar as fronhas que ouviram nossos pensamentos inquietos na
madrugada, como a dizer para elas obrigada, fiquem tranquilas, tudo passará,
agradecer às toalhas de mesa que nos serviram tantas refeições e que foram
palco silencioso de conversas, algumas boas, outras difíceis. Claro, isso não
apaga as tristezas e dissabores, não tenho essa ilusão, mas sei que nos renova
para que possamos nos fortificar já que as adversidades são parte do caminho.
De volta à cozinha, aprecio tudo tomando forma: o que antes
era leite, farinha e ovos se transforma num molho que vai inundar o peixe, cujo
sabor original será desviado pela banana; vegetais que sob o fogo adquirem um
gosto novo e pululam de alegria na roupagem aquecida. Aí está, na comida
pronta, não vivemos essa história, ela chega finalizada para nós, um the end.
Depois da desorganização necessária à feitura dos pratos (há
algo mais sem graça do que cozinha certinha demais na hora do cozimento, feito
programa de televisão?), um novo ritual tem início: os pratos, arrumados, como
cabe à ocasião, migram para a mesa, que se aprontou belamente para recebê-los
(pratos guardados durante um ano enfim saem dos armários).
Assim, quando formos comer, tudo isso passará por nós: o
supermercado e a moça do caixa cuja tatuagem me chamou a atenção, a delicadeza
do porteiro em me ajudar com as compras, a algazarra (e a preguiça também das
meninas) ao guardar os ingredientes, a alegria de perceber que sim, apesar de a
mamãe não ter estado muito alegre, teremos Natal, a ajuda das funcionárias que
contribuíram com o sabor e a ordem, e o tempo, esse convidado inusitado que
está a nos lembrar que ele está em nós e não o contrário.